quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Cláudio Torres faz o balanço da actividade do Campo Arqueológico de Mértola

"Somos em Portugal o mais importante centro de investigação em História e Arqueologia do mundo islâmico ibérico"
Nasceu há 70 anos em Tondela, no distrito de Viseu. Jovem ainda, milita no clandestino Partido Comunista Português. Foge de Portugal no início da década de 60 e vai para Marrocos, depois para Paris, mais tarde para a Checoslováquia e, finalmente, para a Roménia, onde estuda História. Regressa a Portugal poucos dias depois da Revolução dos Cravos. Docente na Faculdade de Letras de Lisboa, vem para o Alentejo no final dos anos Setenta, aqui criando e dirigindo o Campo Arqueológico de Mértola. Prémio Pessoa em 1991, historiador e militante de esquerda, Cláudio Torres recorda nesta conversa a evolução do "seu" Campo Arqueológico de Mértola (CAM) - aborda as dificuldades, os êxitos, as perspectivas futuras. Fala do Projecto de Mértola, da importância do Poder Local de Abril, do papel do turismo, das más relações existentes entre o CAM e a actual Câmara Municipal de Mértola, das solidariedades partidárias, das tradições de luta no Alentejo do Partido Comunista Português...
Como vai o Campo Arqueológico de Mértola, já com mais de três décadas de existência?
Ao fim de 30 anos - estamos aqui em Mértola há trinta e tal anos -, podemos fazer um balanço positivo. Isto está a andar bem, fomos crescendo, fomos organizando, fomos diversificando, o Campo Arqueológico de Mértola está bem. O que nos dói é a descoordenação das coisas. O nosso projecto foi sempre, desde o início, além de científico e de investigação, um projecto político. O projecto científico, cultural, é também para criar desenvolvimento na região. É a única razão justificativa para estarmos aqui e não em Alguidares de Baixo, no Porto ou no fim do mundo... É aqui e nós sempre tivemos como projecto criar desenvolvimento. E esse desenvolvimento só é possível criar-se de cumplicidade com o Poder Local. O Poder Local, do meu ponto de vista, é a grande conquista do 25 de Abril. O 25 de Abril provocou grandes mudanças a nível da estrutura política, da estrutura económica, mas a mais importante conquista foi o Poder Local. Pela primeira vez foi criado um quadro em que as estruturas de poder, ou de contra-poder, que são os municípios, têm capacidade político-‑económica de sobreviver e de criar uma certa sustentabilidade à sua própria região.
Na verdade, o Poder Local tem contribuído decisivamente para o desenvolvimento desta região...
Isto coincide com uma visão histórico-cultural do passado. Todo o Mediterrâneo viveu sempre deste tipo de polis, de estruturas de contra-poder, de cidades-estado, o que justificou um certo tipo de civilização. E a civilização mediterrânica assenta precisamente neste tipo de cidades-estado, aquilo que viria a dar o município. Um espaço cultural dominado por uma pequena cidade justifica uma organização do poder político muito localizado, à escala humana, ou seja, aqui há um relacionamento directo entre um poder local e o desenvolvimento local. Há um conhecimento, sabe-se quem é, quem não é, há uma decisão política, económica e cultural referente aos que dirigem a região. Se em tempos históricos, em época medieval, isto era dirigido por uma ordem militar ou por um senhor feudal, em época islâmica, por exemplo, era dirigido pela comunidade. Esta zona já tinha uma pequena cidade, uma pequena assembleia dos notáveis, constituídos pelos mais velhos. Eram os mais velhos que dirigiam a comunidade, eram consultados em tudo aquilo que era fundamental para região. Essa organização político-cultural foi a que formou o esqueleto do nosso futuro poder municipal. Esse poder municipal é decisivo para a democratização da sociedade.
Voltando ao projecto do Campo Arqueológico...
O nosso projecto aqui esteve historicamente ligado ao Poder Local democrático - o primeiro presidente da Câmara de Mértola depois do 25 de Abril era meu aluno na Faculdade de Letras de Lisboa e foi com ele que começámos este projecto. Era um projecto científico, cultural e político em que a autarquia não era separável. Durante 20 anos funcionámos muito bem, o Campo Arqueológico e a câmara, funcionámos em entreajuda, em discussão dos problemas, em abordagem de tudo aquilo que era fundamental ou não para o desenvolvimento da região. Este projecto do Campo Arqueológico e da ADPM [Associação de Desenvolvimento do Património de Mértola] é o mesmo - a certa altura separámo-nos por razões tácticas, era necessário criar uma estrutura associativa ambientalista que tinha financiamentos próprios. Mas fomos e somos os mesmos, temos os mesmos objectivos, a mesma capacidade de intervenção na região. Estas sinergias entre a ADPM, o Campo Arqueológico e a câmara foram o que nos deu força, que justificou e criou aquilo a que chamámos o Projecto de Mértola.
E como tem avançado esse projecto?
Esse projecto, de certa forma, foi interrompido com a mudança política nos últimos 10 anos, em que houve uma viragem à direita na estrutura camarária de Mértola. Nós, o Campo Arqueológico, e a ADPM, dois grandes motores do projecto, ficámos isolados do outro motor fundamental, a autarquia, que a partir de certa altura cortou completamente qualquer tipo de cooperação connosco. Passou a haver um outro tipo de postura e de relacionamento e, nesta década, as nossas dificuldades aumentaram. O Projecto de Mértola tornou-se mais difícil, mais complexo, cada vez mais fomos obrigados a "inventar" projectos novos para sobreviver, porque tivemos, obviamente, a hostilidade forte da parte da Câmara de Mértola, que virou à direita e rompeu com a parceria que tínhamos há 20 anos...
Mas, apesar disso, não pararam...
Apesar dessa ruptura, conseguimos sobreviver, conseguimos autonomizar-nos, e a ADPM conseguiu estruturar a sua forma de acção no território - e não só, hoje tem projectos em Moçambique, em Cabo Verde, afirmou a sua autoridade e a sua capacidade técnico-científica. E nós, Campo Arqueológico, virámo-nos, como é normal, para o Mediterrâneo. Somos hoje em Portugal o mais importante centro de investigação em História e Arqueologia do mundo islâmico ibérico, temos a melhor biblioteca islâmica do País, temos um Centro de Estudos Islâmicos que a pouco e pouco fomos construindo, isto era uma ruína, conseguimos apoios financeiros diversos - por exemplo, o Fundo de Turismo pagou uma parte significativa da reconstrução do edifício. Hoje temos instalações, temos uma biblioteca valiosa e, principalmente, temos um corpo técnico excepcional. Neste momento, o Campo Arqueológico tem cerca de 20 técnicos superiores, dos quais 11 doutorados. Estamos a colaborar com as universidades de Coimbra, do Algarve e de Évora, directamente, através de projectos de investigação e de formação. Com o mundo exterior, temos hoje projectos de colaboração, na área formativa, com Granada, Marraquexe, Manuba (Tunísia), Paris e Madrid, ou seja, um conjunto de universidades com as quais estamos a trabalhar em rede, o que permite que, aqui, no Campo Arqueológico, em Mértola, exista um mestrado e que para o ano comece um doutoramento em Estudos Mediterrânicos e Islâmicos. Tudo isto possibilita que seja criado no Alentejo o primeiro grande centro de investigação e formação universitária com credibilidade a nível europeu. in diariodoalentejo.pt
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