Em Mértola, o maior concelho do Baixo Alentejo, o mais pobre e despovoado, estudar significa viajar de monte em monte, duas ou três horas por dia, e passar 12 horas longe de casa. As famílias estão conformadas, os alunos também. Ali todos sabem que a vida das crianças, do povo e da comunidade está nas mãos da escola. Foi por isso que resistiram ao ultimato «encerram todas as que tiverem menos de 21» alunos.
Qual calor abrasador, qual poeira colada à pele, qual cansaço de fim de ano lectivo? Os trinta quilómetros e as duas horas de pára-arranca passadas dentro da velha Ford Transit sem ar condicionado parecem dar-lhe um vigor fora do comum. Às 18h50, à chegada a casa, Filipe, 13 anos, aluno do 6.º ano da Escola EB 2,3/ES São Sebastião em Mértola, sai apressado da carrinha de transporte escolar e some-se porta dentro. «É a cegueira do computador», esclarece a mãe.
Filipe é o único filho de Inácia e de José Horta. Ela tem 48 anos, ele 52. Ela tem a 6.ª classe, ele fez a quarta. A avó Maria Joaquina, uma matriarca que nos olha de soslaio do alto dos seus 88 anos, é analfabeta. A família vive no Monte do Esquecido, um lugar com três casas habitadas e outras tantas em ruínas, a trinta quilómetros de Mértola, onde moram mais dois idosos, um viúvo, outro solteiro.
Ao fim da tarde e sempre que o tempo o permite, o programa que ocupa os cinco adultos é o regresso do Filipe. O miúdo passa o dia na vila. Sai cedo para a escola. A carrinha vem buscá-lo às 6h30: «Até amanhã de manhã, senhor Luís», despede-se Inácia.
A pressa do gaiato tinha razão de ser: «Estive na biblioteca e pus a sacar vários episódios de Naruto [um desenho animado japonês].» Caso para dizer que não foi à toa que o Filipe aderiu ao programa e-escola, pois o computador portátil que recebeu graciosamente é o que lhe permite levar o novo mundo para dentro da velha casa: «Na escola tem fartura de internet e aproveita. Nas férias vai a Vale do Poço, ali também é ilimitada», diz Inácia enquanto se dirige para a porta da entrada e afasta as fitas plásticas e coloridas. A passo lento e com as mãos nas algibeiras, José Horta segue a mulher e já dentro da cozinha confessa: «Já vi ali o castelo da Bela Adormecida e o Pinóquio. Ainda não havia luz eléctrica aqui no Monte e eu já trabalhava na iluminação da Eurodisney, em França. É em Paris, não sei se sabem. Está lá tudo o que eu fiz, vi ali na internet.»
O pai de Filipe aponta para o Toshiba preto que o filho tem aberto sobre o assento de bunho de uma cadeira de madeira, mesmo ao lado da chaminé e da cana de paios fumados, e ordena com brandura: «Deixa lá a bonecada e mostra aí a estes senhores os países por onde o pai andou. Ele foi a Bielorrússia, a Rússia, a Alemanha. Depois casei e levei a senhora, mas ela não gostou...»
Às voltas com uma caneca de café com leite e uma fatia de pão com margarina e com os olhos colados às personagens do manga japonês, a criança nem se mexeu. E assim permaneceu, imóvel, apesar das múltiplas insistências do pai. Por fim, Inácia pôs fim à contenda silenciosa: «Já sabes que a internet é muito fraquinha, não dá para nada.» E vira-se para nós: «Desde que o Filipe tem o computador, há para aí um ano, vem da escola e não quer sair de casa. Diz que está cansado... Nunca mais quis saber da PlayStation2. Sabem do computador? Foi a escola que tratou de tudo, foi oferecido. A internet é que custa cinco euros por mês. Em Mértola é que se têm interessado mais por ele.»
in jn.sapo.pt